Psicóloga Simone Villas Bôas Saraiva

psicóloga, gestalt-terapeuta

CRP 06/177991

Gestalt-terapia e gênero

Na última semana, o debate sobre relações construídas a partir de papéis de gênero veio à tona com força, o elefante na sala, um incômodo que me remete memórias de minha própria condição e vivências enquanto mulher. Compartilho hoje algumas reflexões sobre Gestalt-terapia e gênero que tenho trabalhado.

Ao ler a reportagem da revista Piauí, conseguimos ter a dimensão do quanto Dani Calabresa foi e está sendo desacreditada, precisando de muita energia, apoio e exposição massiva para ser ouvida. Teve sua história questionada e silenciada mais de um vez, em prol de quem exerce poder fundamentado em uma posição hierárquica dentro do trabalho e da construção patriarcal em que se insere, e o utiliza para subjugar mulheres. Este relato dilacera ao escancarar a violência de gênero e a posição assimétrica das mulheres no mundo do trabalho.

Sexo e gênero são construções sociais

Essa construção social que define como homens e mulheres devem ser, que espaços podem ocupar, que tarefas devem realizar e como devem se comportar, são formas definidoras das relações de poder que identificamos com facilidade neste relato e que precisam ser questionadas para o estabelecimento de relações mais saudáveis. Essas relações chegam na clínica diariamente, porque não são vivências intrapsíquicas, mas relacionadas ao ambiente, ao que foi ensinado e reproduzido desde a infância. Deste modo, creio que é possível mudar o mundo em que vivemos.

Abordar gênero a partir da psicologia e da Gestalt-terapia, principalmente refletindo como cada um de nós é socializado de acordo com determinada norma de gênero, é crucial para que identificar como essas relações são construídas.

Pretendo utilizar este espaço para discutir mais sobre questões de gênero, para além da violência de gênero, dentro da abordagem gestáltica.

Espaços públicos e privados

Para além do senso comum, o conceito de gênero pode ser visitado a partir de uma visão política, servindo como um termômetro que nos indica as desigualdades que contribuem para a separação dos espaços sociais e minam a possibilidade de relações mais equitativas.

Homens tradicionalmente ocupam espaços públicos do trânsito, dos estádios de futebol e das arenas políticas. O poder feminino fica restrito a espaços privados, a “dona de casa”, responsável pela gestão dos afazeres domésticos e pelo cuidado com as pessoas, exercendo uma liderança emocional.

O assunto fica ainda mais em evidência quando falamos de algumas introjeções de gênero reproduzidas desde a primeira infância e que começam a partir de pequenas separações, definindo a socialização das crianças de determinada forma. Garotas ganham bonecas, vassouras, produtos de beleza e xícaras de chá, observando e aprendendo com as mulheres a rotina da casa, sendo encorajadas a se apropriar do espaço privado. Enquanto garotos ganham carrinhos, bolas e bonecos de super heróis, sendo mais incentivados a ocupar as ruas e a aprender como prover para as famílias.

Questionar a ocupação dos espaços públicos e privados é necessário, assim como entender suas consequências para o sofrimento psíquico. E na clínica, esse olhar é preciso para identificar como estas introjeções levam a determinadas crenças. Há outros desejos para além desta construção social e outros meios de sair da zona de conforto da norma. A clínica pode ser o espaço a descoberta e o acolhimento de outras subjetividades de ocupação destes espaços, não definidas apenas por estereótipos de gênero.

Dupla jornada de trabalho para as mulheres

Partimos, então, do princípio de que homens e mulheres ocupam os espaços públicos e privados nas esferas sociais. Se aproximarmos o assunto de nossa vivência atual, marcada pelos esforços em cessar a contaminação de mais pessoas pelo vírus da Covid-19, as nuances dessa divisão ficam ainda mais visíveis. Por si só, uma pandemia já potencializa inúmeras desigualdades sociais existentes, expondo as fragilidades de nosso sistema social e econômico, pautado na lógica do lucro.

Se atrelarmos à observação das medidas adotadas atualmente de distanciamento social e quarentena, que suspendem atividades que não sejam de suma importância para o funcionamento do Estado e a manutenção do capital, o cenário que encaramos é de uma dupla jornada de trabalho garantida às mulheres, que agora veem todas as diferentes esferas de seu convívio social resumidas ao lar e sem poder contar com a sua – já escassa – rede de apoio.

Há uma nova carga mental e física, onde é preciso equilibrar os pratos entre a educação dos filhos, a organização da casa, o cuidado emocional com os familiares e as responsabilidades do home office. Com essa quantidade de tarefas, a conta não fecha e falta tempo para exercer todas as atividades com calma, com tempo para cuidar de si mesma e suas próprias demandas.

Ironicamente, neste momento em que esse trabalho reprodutivo e doméstico fica ainda mais em evidência, ele segue ignorado e invisível, pois, todos os esforços estão voltados à busca de soluções para a crise imediata enquanto a exploração que mantém o sistema vivo e funcional continua a todo vapor.

É preciso mais do que nunca questionar esses lugares e aproveitar o momento para combater as desigualdades de gênero, a fim de criar uma nova perspectiva para a cooperação e companheirismo, onde o espaço privado seja entendido como responsabilidade de todos que o compartilham. É hora de cuidar de quem cuida.

E a Gestalt-terapia?

A Gestalt-terapia é uma abordagem terapêutica que considera o contexto sócio-histórico do consulente e não somente sua realidade intrapsíquica. Deste modo, torna-se um permanente desafio entender como normas socialmente estabelecidas e as mudanças destas normas ao longo do tempo afetam cada um de nós a partir da relação com a alteridade. É importante olhar para as demandas trazidas na clínica a partir do contexto de socialização deste consulente, do ambiente familiar ao escolar, e de seus questionamentos atuais.

Questões relativas a gênero somam a este contexto, porque também definem o processo das relações a partir de um entendimento do outro sobre o que é uma identificação por gênero.

Meninos e meninas são criados e socializados de maneiras diferentes e a perspectiva a partir destas introjeções ajuda a compreender as queixas da vida adulta.

Assim, é possível acolher os conflitos gerados nos laços afetivos e compreender a relação que gera violência de gênero no aqui e agora.

Trilhar nessa direção é considerar a existência de relações sociais assimétricas na relação terapêutica e oferecer a oportunidade para um maior entendimento dos movimentos do consulente em busca de sua autorrealização.



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Simone Villas Bôas Saraiva

Simone Villas Bôas Saraiva

CRP 06/177991
Psicóloga clínica, gestalt-terapeuta, especialista em gênero e sexualidade. Psicoterapeuta com experiência clínica com demandas de estresse, ansiedade e depressão.


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