Estas são notas improvisadas após a apresentação do trabalho “Pandemia, Teletrabalho e Gênero: Uma Perspectiva Sistêmica sobre a Sobreposição de Papeis nos Espaços Privados” no VIII Congresso de Gestalt-terapia do Estado do Rio de Janeiro em novembro de 2022.
Inicio esta apresentação me autodescrevendo. Sou uma psicóloga branca, filha de uma empregada doméstica parda. Assim, experiencio tanto o paradigma colonial quanto o neoliberal de relação com o trabalhar me identificando como mulher.
Pensar trabalho e gênero na psicologia clínica pode ser um exercício de identificação da emergência das questões relacionadas à branquitude e ao neoliberalismo. Por isso mesmo, não poderia deixar de homenagear Miguel e Cleonice, vitimados tanto pela pandemia quanto pelo modo colonial de entender o trabalho doméstico profissional como uma servidão desprovida de direitos.
Também sou filha do paradigma cartesiano que divide o mundo em dualismos: eu e o outro, natureza e cultura, mente e corpo. Por mais que seja apaixonada por uma visão fenomenológica de mundo, reconheço-me entre aqueles que chegam para os encontros terapêuticos trazendo de casa uma visão irrompida de seu corpo e de suas relações: “será que posso aceitar o que sinto?”; “será que posso assumir o que penso?”. E é aproveitando os recursos já existentes que costumo começar a estabelecer uma parceria terapêutica.
Gestalt-terapia
Uma abordagem adequada para questões de gênero e trabalho na clínica gestáltica passam por três pressupostos fundamentais: a Gestalt-terapia como uma teoria das relações mais do que uma teoria da personalidade (BELMINO, 2020); a GT como uma prática do contexto sócio-histórico (PERLS, 1977); e a GT como uma prática fenomenológica-existencial que permite a suspensão dos conhecimentos do terapeuta sobre o mundo para chegar ao encontro, possibilitando, assim, a emergência da descrição do consulente.
Espaços públicos e privados

No paradigma colonial, os espaços privados são o domínio das pessoas que se identificam como “mulheres”, onde exercem papeis de “dona-de-casa”, “mãe”, “empregada doméstica”, entre outros. Desde o século XIX, a aliança entre o feminismo branco e o neoliberalismo possibilita a ocupação destas “mulheres” também nos espaços públicos através do acesso à educação, ao direito de eleger e serem eleitas, de exercer atividades profissionais sem a permissão de pais ou maridos.
Ocupar espaços públicos e privados frequentemente trazem relatos de “mulheres” de sobrecarga física e emocional relacionados a todas as formas de trabalho. Somente muito recentemente, movimenta-se em direção a uma reocupação das pessoas que se identificam como “homens” dos espaços privados. Posso citar a lei nº 14.457, de 21 de setembro de 2022, que considero a primeira lei no pais que equipara direitos de parentalidade entre “mulheres” e “homens”.
Isto não significa que “homens” não descrevem também uma sobrecarga nas suas relações intímas ou profissionais. Esta sobrecarga é frequentemente descrita na forma como assumem os papeis de “marido”, “pai”, “provedor”, entre outros.
Sistemas e papeis
Pode-se definir papeis como um conjunto de comportamentos característico de uma situação, que gera expectativas e exerce influência (ROSSINI, 2013). A mesma “mulher” que exerce o papel de “mãe” em um sistema íntimo pode exercer o papel de “trabalhadora” em um sistema profissional ou de “estudante” em um sistema acadêmico. O que é esperado e como esta “mulher” exerce seu poder nestes sistemas é diverso.
Sistemas neste contexto está relacionado às relações e aos ambientes. Pode-se definir sistemas do espaço público os sistemas íntimos, que não necessariamente são definidos como famílias pois podem ser formados por uma comunidade com interesses em comum. Uma pessoa também pode pertencer a sistemas dos espaços públicos como o sistema profissional na empresa para qual presta serviços ou o sistema acadêmico na instituição onde estuda, entre outros.
Gênero
Importante lembrar que gênero, ou o que definimos o ser “mulher” ou ser “homem” no mundo (SCOTT, 2019), é uma ficção performada intencionalmente na relação (BUTLER, 2019), sendo definido pela cultura e não pela anatomia dos corpos (LOURO, 2018).
A pandemia de Covid-19
Os dados da PNAD Contínua – outras formas de trabalho mostram uma aproximação do número de horas dedicadas ao trabalho do espaço privado entre “homens” e “mulheres” desde a década de 1990 (IBGE, 2021). No entanto, o isolamento social entre os sistemas afetou mais as “mulheres responsáveis pelo cuidado com crianças”. Em um recorte de raça, as “mulheres pardas e pretas” foram mais afetadas do que “mulheres brancas” (PARENT IN SCIENCE, 2020; GÊNERO E NÚMERO; SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA, 2020). Deste modo, pode-se observar que houve retrocesso na equidade de gênero (e raça) no trabalho tanto doméstico e de cuidado quanto profissional e acadêmico.
Teletrabalho
Pode-se definir o teletrabalho como uma desterritorialização da atividade produtiva, flexibilização do tempo, do espaço e da comunicação que podem ser realizados ou não através de Tecnologias de Informação e Comunicação (CASTELLS, 2013; LÉVY, 1999). É frequentemente é relacionado como um modo de melhor conciliação entre demandas de produção e reprodução. No entanto, representa uma relação de poder possibilitada por uma introjeção da lógica taylorista de controle sobre atividade produtiva através do autodisciplinamento e da vigilância remota dos corpos (ALVES, 2014; HAN, 2017).
Deste modo, pessoas que se identificam como “homens” e “mulheres” ou com os papeis tradicionalmente atribuídos a “homens” e “mulheres”, poderão reagir de modos diferentes à possibilidade de trazer as atividades do espaço público para o espaço privado. Do mesmo modo, os sistemas destes espaços irão se acomodar de formas diversas a esta possibilidade. Deixo para cada um ou cada uma descrever sua relação com o trabalho e como esta relação estão sendo afetados por esta fusão entre espaços públicos e privados.
Conclusão
O teletrabalho já era uma modalidade de trabalho em expansão anos antes da pandemia de Covid-19 e as políticas de isolamento social apenas catalisaram esta possiblidade para um maior número de pessoas. Entende-se que é uma possibilidade maior para profissionais com curso superior, excluindo as atividades do cuidado nas quais as mulheres são maioria.
Por isso, torna-se necessário observar como o fenômeno coletivo das mudanças neoliberais nas relações trabalhistas afetam aqueles que chegam à clínica descrevendo um sofrimento tanto das relações pessoais como das profissionais.
Referências bibliográficas
ALVES, D. A. Tempo e trabalho. Gestão, produção e experiência do tempo no teletrabalho. Porto Alegre: Escritos, 2014.
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BUTLER, J. Atos performáticos e a formação dos gêneros: um ensaio sobre a fenomenologia e teoria feminista. In: Holanda, H. B. de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
CASTELLS, M. A sociedade em rede. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2013.
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LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
LAURETIS, T. DE. A tecnologia de gênero. In: Holanda, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019
LOURO, G. L. Um corpo estranho. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
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PERLS, F. S. Gestalt-terapia e potencialidades humanas. In: Stevens, J. O. (Org.). Isto é Gestalt. São Paulo: Summus, 1977. p. 19-27.
ROSSINI, V. S. O conceito de papel social em Goffman. São Paulo: USP, 2013.
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: Holanda, H. B. de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
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