Falar de violência de gênero no Brasil exige escolher uma determinada figura dentro de um fundo interseccional social e histórico. O feminicídio não acontece porque um homem perdeu o controle diante da insubmissão de uma mulher. Essa é a narrativa de proteção de um sujeito inimputável pela omissão do Estado.
Corpos identificados como femininos são feridos repetidamente no Brasil. Este território enquanto Estado Nação é fundado nos preceitos coloniais, patriarcais e capitalistas, a partir da invasão predatória e proselitista. A partir destes preceitos, o campo organiza a percepção e o desejo. Faz isso através da objetificação e do suposto direito à propriedade sobre determinadas vidas humanas.
O fenômeno do feminicídio é a figura que emerge de um fundo colonial.
Biopolítica colonial
O feminicídio é uma ação coerente com a biopolítica colonial. Achille Mbembe chama de necropolítica o poder de decidir quem vive e quem morre. A gestão da vida e da morte afeta a todas as pessoas, mas de forma desigual. Ataca especialmente pessoas não brancas e não cisheterossexuais.
A omissão do Estado é intencional. Um exemplo disso é a decisão dos homens brancos do Supremo Tribunal Federal sobre ADPF 973. Aqui, o Estado reconhece o racismo estrutural, mas se exime da responsabilidade sobre ele.
A Lei Maria da Penha é um instrumento valioso e potente que vem sido aprimorado desde sua promulgação em 2006. No entanto, é cotidianamente ignorado nas instâncias do Judiciário e do Executivo. Não são necessários mais instrumentos punitivistas. Devemos propor uma boa manutenção dos dispositivos de abrigo seguro para as vítimas de violência.
E o neoliberalismo?
A violência contra determinadas pessoas em posições não hegemônicas não é algo que, à princípio, sirva ao capital. Afinal, estas pessoas também são produtores e consumidores, o que fica evidente no discurso de Luiza Trajano. É um daqueles pontos que historicamente apartam narrativas do Estado e do Capital.
No entanto, a melhor estratégia para lidar com a violência é a colaboração comunitária e ancestral. São as manifestações nas ruas, as reuniões nos bairros, a pressão nas galerias do Legislativo. Mobilizações comunitárias, sim, são algo inerentemente nocivo no sistema neoliberal. Quem está junto, está mais forte. Quem está junto, não aceita qualquer salário nem consome qualquer coisa.
Se o Estado se omite permitindo violência física, sexual, patrimonial e moral, o Capital se aprimora nas práticas subjetivas. Há lucro possível em uma violência estética e semiótica que determina como devem ser os corpos desejados. Devem ser estes corpos mais magros? Coloridos ou clean?
A clínica como prática política
Se a violência de gênero é questão de Estado, a clínica também é prática política. Não no sentido político partidário, mas no ato de desvelar o campo. A violência de gênero não é “questão pessoal” ou “baixa autoestima”. É a experiência vivida de um organismo em um ambiente abusivo.
A vergonha, o medo e a culpa são algumas das respostas criativas possíveis à situações de violência e abuso. Determinadas expressões precisam ser acolhidas de modo tranquilo, observando o risco de revitimização.
A prática clínica exige olhar atento aos fenômenos para nomeá-los. Nesse sentido, awareness não é introspecção isolada, mas reconhecimento do campo organismo/ambiente. Fazer essa passagem é uma forma de emergir à experiência: “não é você”, “o que aconteceu não é sua culpa”.
Setting terapêutico e heterossuporte
O trabalho clínico também é espaço da construção segura de um setting terapêutico. Um espaço de acolhimento para falar, pedir ajuda, nomear o que sente, reconhecer e aceitar a violência sofrida ou gerada.
A pessoa terapeuta pode articular sobrevivência concreta com a pessoa consulente. Isso inclui conhecer e orientar sobre dispositivos legais, abrigo seguro, redes comunitária e alternativas de proteção. Esse trabalho não substitui o Estado, mas provê heterossuporte a pessoa consulente não seja desamparada.
Ambivalência e testemunho
A pessoa terapeuta deve estar atento à ambivalência. A pessoa consulente pode amar e temer. Pode querer ir embora e querer voltar. Pode proteger aquela pessoa que quase a matou. Essa experiência não é impossibilidade de prosseguimento do processo terapêutico. A clínica fenomenológica deve acolher essa complexidade sem julgamento e sem pressa.
A Gestalt-terapia pode operar com sustentação e testemunho. Sustentação: oferecer apoio consistente, sem infantilização, com clareza sobre o risco. Testemunho: legitimar a experiência narrada, nomear a violência, reconhecer o trauma e o campo que o produz. Testemunhar não é “acreditar” apenas; é devolver sentido ao que foi vivido e rompido.
A prática clínica também exige reconhecer seus limites. A intervenção terapêutica não substitui medidas de proteção ou políticas públicas contra a violência de gênero. O consultório não é abrigo, delegacia ou é vara de família. Uma prática clínica responsável pergunta “o que é possível?”, “quem pode proteger?”, “qual rede está disponível?”.
Conclusão
Afirmar que o feminicídio é questão de Estado é atribuir responsabilidade. Não são tragédias isoladas. Não são excessos individuais. São expressões coerentes de uma biopolítica colonial sobre determinados corpos.
Não precisamos de mais leis, apenas melhor aplicação das que existem. Não precisamos de mais discursos moralizantes, mas de abrigo, recurso, prevenção e posvenção.
A clínica pode ser o sítio da resistência contra a violência de gênero. Resistência contra o discurso que individualiza o fenômeno que é coletivo.


Deixe um comentário