Assisti Noites de Cabíria, de Frederico Fellini, no último final de semana e esta experiência ainda ressoa em mim. Cabíria me encantou com sua dança, sua fé em suas próprias possibilidades e seus sorrisos. Identifico-me mais com ela do que gostaria. Afinal, fomos educadas nesta mesma forma cristã e eurocêntrica: o amor romântico como finalidade social e promessa de felicidade.
“Mulher para casar”
Cabíria é uma mulher, que vive com intensidade e alegria. Mas é também uma mulher “fracassada” aos olhos da norma da sociedade italiana, pois não constitui “família”. É traída, enganada, roubada, ridicularizada, deixada para morrer afogada no rio pelo namorado. Salva por sua verdadeira família que é a comunidade periférica de Roma do pós-guerra.
A teórica queer Brigitte Vasallo chama atenção para essas mulheres fracassadas. Elas são aquelas que não “deram certo” e que não cumpriram corretamente a escada relacional. Elas falham na missão de serem “mulheres para casar”.
Cabíria deseja amar e ser amada, mas também sonha com uma vida menos dura. Permite-se sonhar com uma existência que não precise ser marcada apenas pela sobrevivência e pelo engano. Em um de seus encontros, padre Giovanni dá um conselho. Diz para ela se casar, como se essa fosse sua única possibilidade. A fala dele não é exceção. É a expressão de uma norma social. Norma esta que impõe às mulheres a ideia de que fora da conjugalidade não há vida possível. Essa é uma construção histórica, social e política. Construção esta que define quem merece afeto, cuidado e estabilidade. Também determina quem deve continuar à margem.
Essa norma define o valor das mulheres como um Outro sugerido por Simone de Beauvoir. Ela não é neutra. Também não é natural. Ela compõe o que Vasallo denuncia como ideologia.
Amor romântico como ideologia
Brigitte Vasallo nos convida a olhar o amor romântico como uma engrenagem que organiza a vida, mas também a submete. É um dispositivo de controle social, especialmente sobre as mulheres e outras existências dissidentes. Há a promessa de realização e pertencimento, mas cobra silêncio, exclusividade, sacrifício e abnegação.
A ideologia do amor romântico nos promete completude, mas esconde o custo dessa promessa: a perda de si. Vasallo fala do amor como um regime de obediência. Enquanto Fellini não poupa a igreja e sua doutrina. Exibe a romaria daqueles que suplicam por milagres sem se responsabilizar pelos próprios comportamentos. Cabíria sente o desconforto do não pertencer e de ser autêntica demais consigo mesma e com o mundo.
O olhar da Gestalt-terapia
Na Gestalt-terapia, trabalhamos com o modo como nos relacionamos. Cabíria se aproxima sempre com abertura para o novo, mesmo que, ao final, ocorra a frustração.
A psicoterapia, nesse contexto, é um espaço de ampliação da awareness sobre como nos relacionamos. Ao reconhecer nossas recorrências, tornamo-nos mais capazes de fazer escolhas coerentes com o que realmente desejamos e precisamos. É também uma oportunidade para avaliar o auto e o heterossuporte, ambos necessários para relações mais satisfatórias. Não se trata de aprender a amar “melhor”. E sim de perceber que papel que ocupamos nos vínculos, o que esperamos deles e como podemos habitá-los.
Conclusão
Cabíria nos ensina com sua insistência e com sua dor. Acredita, tenta, cai e levanta. E ao final, ela sorri com lágrimas nos olhos e segue andando ao longo de seus companheiros de vida. Há algo de profundamente vivo nesse gesto. Não é esperança cega. É uma persistência em existir para além do roteiro e da norma.
Que possamos, como Cabíria, reescrever nossas formas de amar. Não para sermos aceitas, mas para sermos inteiras.
Referência:
VASSALO, B. O desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos. São Paulo: Elefante; 2022.

Estou com horários disponíveis para atendimentos individuais e para casais, além de outros arranjos afetivo-sexuais. Online e presencial em Pindamonhangaba, SP. Além deste tema, tenho experiência em outros ligados a relacionamentos afetivos, gênero e sexualidade.
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